O ensaio aborda aborda as estéticas da vigilânicia no contexto do coronavírus (coronavigiliancia), focando mapas de calor e suas biopolíticas Seguem trechos publicados na série do Lavits (rede latinoamericana de estudos de vigilância, tecnologia e sociedade):

Utilizadas em operações militares e em controle de fronteiras, as câmeras térmicas tiveram um vertiginoso aumento de uso com a pandemia do coronavírus. Atreladas a drones, monitoraram Wuhan do alto e um protótipo associado a alto-falantes foi testado em Recife. Recentemente, a Amazon implantou esse tipo de câmera em seus depósitos para monitorar o contágio entre seus funcionários. A câmera funciona como um porteiro eletrônico. Caso o indivíduo esteja com febre, não entra. O corpo transforma-se assim na nova senha do novo normal.

Não se discute a necessidade de conter a propagação do vírus, tomando medidas que interferem na vida social. Sabemos que são, todavia, a única forma de controle da pandemia. A questão aqui é outra: compreender as estéticas da vigilância do coronavírus no campo de uma nova biopolítica. Uma biopolítica porosa, que adentra a fisiologia, monitorando os corpos sem tocá-los, sem coerção e sem dor.

Biopolíticas do indolor

Isso não quer dizer que se trata de uma biopolítica menos violenta que a do capitalismo industrial. Pelo contrário, ela é tão ou mais perversa que as modalidades coercitivas e conhecidas por todos. Sua eficiência depende da convergência entre rastreabilidade e identidade, confluindo, em situações extremas, como a do coronavírus, para uma outra hierarquia social. Nessa hierarquia, contrapõem-se os corpos imóveis e os móveis, entre quem é visível e quem é invisível perante o Estado e pelos algoritmos corporativos.

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É cedo para antecipar o que ocorrerá no contexto pós-pandêmico e saber se essa distribuição social entre móveis e imóveis se perpetuará no novo normal. Contudo, não é prematuro afirmar que a pandemia já ditou algumas regras da gramática neoliberal como fundamentos sociais. A naturalização da vigilância é seu pilar de sustentação e o mapa de calor a tradução visual do cotidiano paranoico.

Mapas de calor

O mapa de calor é uma técnica de visualização de dados que mostra a magnitude de um fenômeno como cor em duas dimensões. A variação na cor, por matiz ou intensidade, revela como o fenômeno está agrupado ou se modifica. Muito usados no campo da biologia molecular para identificar o comportamento de genes em diferentes condições, os mapas de calor também traduzem visualmente as informações sobre a temperatura corporal, recurso que se popularizou com a pandemia do coronavírus e do qual me apropriei no projeto Coronário.

Obra de net art de minha autoria, comissionada para o programa IMS Convida, do Instituto Moreira Salles, Coronário reúne as palavras mais marcantes da experiência cultural do coronavírus no Brasil (como álcool gel e comunavírus), mensuradas pelo índice de tendências de buscas do Google, entre março e abril, período que coincide com os primeiros dias do isolamento social. As palavras mais acessadas pelo público do site respondem dinamicamente, mudando de cor, em conformidade com um mapa de calor que reflete a atenção recebida.

Importante destacar que esse uso dos mapas de calor para monitorar a atenção do público é assentado no marketing digital e faz jus aos princípios da economia do olhar que move a Internet. É fundamental, para reter a atenção do usuário, compreender não só as formas pelas quais seu olhar transita nos conteúdos, mas os pontos em que se assenta e seus movimentos de dispersão. Softwares especialmente concebidos para este fim rastreiam o movimento do mouse na tela, identificando os pontos mais clicados e as áreas de maior atenção e desatenção dos usuários. Nasce aí um complexo de técnicas que combinam elementos de psicologia cognitiva, semiótica e repertório de marketing voltado para a captura daquilo que já foi o sinônimo do lugar da liberdade: o olhar.

É exatamente este tipo de rastreamento que utilizamos no Coronário. As palavras mais acessadas do léxico do coronavírus (o Coronário) reagem aos cliques dos visitantes, refletindo o interesse coletivo. Segui a lógica da dataveillance (vigilância de dados), cujo foco não é o indivíduo, mas sua integração a um padrão. Por esse motivo, as manchas de calor, no site do Coronário, não são resultantes de interações por processos de ação e reação. Elas operam de forma relacional, indicando a distribuição da atenção de todo o público, incorporando as interações individuais na constituição de padrões e tendências coletivas.

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