[texto da orelha do livro Espaço em obra de Guilherme Wisnik e Julio Mariutti, Edições Sesc, 2018]
Espaço em obra, de Guilherme Wisnik e Julio Mariutti, é um livro palimpsesto. Como os antigos manuscritos que tinham o pergaminho raspado para serem reescritos, aqui cada página remete a múltiplas camadas. Uma dessas camadas diz respeito ao diálogo autoral que Wisnik e Mariutti mantem desde os tempos da revista Bamboo. Nela Guilherme escreveu uma coluna de 2012 a 2016, colocando a arquitetura, o urbanismo e a arte em diálogo com o design gráfico, a partir das interlocuções com Julio. Outra camada aparece nos títulos. Desde o do livro, “espaço em obra”, referência à interpretação que o crítico Alberto Tassinari dá ao espaço moderno, até o dos três capítulos que organizam o volume. O primeiro, “O que aconteceu com o urbanismo?”, é uma citação a um ensaio do arquiteto Rem Koolhaas. O segundo, “Gigantesco país da América”, incorpora a definição de Corbusier sobre o Brasil. No último, “Artearquitetura”, um neologismo que aponta para O complexo arte-arquitetura do crítico e professor emérito da Universidade de Princeton, Hal Foster.
A camada mais multifacetada é a da edição do conjunto dos textos. Ela apresenta, além dos 42 artigos publicados na Bamboo, cinco inéditos (A informidade do informal, Lazer e jogo, Lugares outros, Entre o lugar e o mapa e Vazio e sombra). Reorganizados a partir de três chaves temáticas – os desafios do urbanismo, o sul global e as relações entre arte e arquitetura –, os textos são articulados à temporalidade da leitura sequencial que o livro proporciona. Dessa forma, apesar de produzidos isoladamente e em diferentes épocas, formam um todo integralmente novo. Nele se avizinham, sem que se criem falsas continuidades, perfis analíticos de cidades como Tóquio, Shenzen, Brasília e São Paulo, e de artistas como Helio Oiticica, Cildo Meireles, Gordon Matta-Clark e Michael Wesely, para citar alguns. Somam-se a eles verdadeiros “portraits” de arquitetos e estúdios, como Sergio Bernardes, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi e Oscar Niemeyer e, entre os internacionais, Tadao Ando, Herzog & de Meuron, Diller Scoffidio e SANAA. Todos retratados a partir de suas obras.
Não menos relevantes são as reflexões sobre o Plano Diretor municipal de São Paulo aprovado na gestão de Fernando Haddad, em 2014, frente aos impasses da cidade pós-industrial. Na mesma direção, vale o olhar retrospectivo para interrogar quais foram os desdobramentos, no campo da urbanização contemporânea, do “espetáculo do crescimento” do governo Lula. Entremeando esses temas são colocadas discussões que nos levam a repensar a emergência de alguns fenômenos recentes e a persistência de outros. Por um lado, aparece a densidade de movimentos, como Ocupe Estelita, no Recife, e Praia da Estação, em Belo Horizonte, que marcaram as formas de ativação do espaço público nas cidades brasileiras. Por outro, a vitalidade paradoxal, porque mortífera, da cidade organizada como “Carrópolis”, um dos temas da 10a Bienal de Arquitetura, da qual Guilherme foi Curador geral, e que pontua vários momentos desta coletânea. Esse tipo de cidade é estruturada a partir da ilusão de liberdade que o automóvel nos dá, ainda que nos aprisionando no trânsito, poluindo o ambiente e consumindo desmedidamente combustível fóssil. Símbolo de um “life style” irresponsável, a Carrópolis corrobora uma tese cara a Wisnik, a de que “o conceito de obsolescência programada está se deslocando dramaticamente das mercadorias para o próprio território do planeta.”
Daí a necessidade de chamar a atenção para a sustentabilidade, apostando em soluções baseadas na reciclagem e no reaproveitamento como possibilidades construtivas. E é isso que se faz neste livro. Sem ceder à tentação de demonstrar fórmulas e resolver conflitos, este espaço em obra é um convite à interpretação das palavras e das coisas. Ele se abre ao leitor como um original de segunda-geração, onde em cada retorno descreve-se um novo centro e um outro possível recomeço.
[imagem: Juliana Alves]