Assisti Bacurau e recomendo. O filme faz uma radiografia do futuro do Brasil, mas baseado no nossa presente. É uma distopia que revela o estado de violência em que estamos submergindo.
A história se passa em Bacurau, uma cidade que desapareceu do mapa. E isso não é força de expressão. A cidade subitamente deixou de ser registrada nos serviços de geolocalização. Como se houvesse sido deletada do Google Maps. E aí já aparece a primeira questão contemporânea do filme: não constar do sistema georeferenciado de buscas indica a posição na distribuição geopolítica e social contemporânea.
Nesse lugar perdido no tempo e na história, ocorre um confronto entre invasores, brancos e americanos, liderados por um chefe neonazista, e a população local, que decide recorrer a Lunga, uma figura andrógina interpretada magistralmente pelo ator Silvero Pereira, que é uma espécie de mistura de cangaceiro e bandido social do século 21.
Não vou detalhar a história porque temos muito pouco tempo e vários autores, inclusive na Rádio USP, já comentaram o filme. Chamo a atenção é para sua capacidade de fazer uma alegoria da brutalidade do nosso tempo no Brasil, cruzando estéticas do cinema novo e do videogame.
Glauber do século 21
Muitos críticos tem insistido que o filme é um Glauber Rocha do século 21 e é verdade. E isso para mim não desabona o filme em nada… Mas do meu ponto de vista, é um Glauber do século 21, com elementos dos filmes de faroeste, revistados por uma estética a la Tarantino do sertão nordestino.
E é nessa fusão estética, do Cinema Novo com Tarantino, que Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, os diretores, revelam os diferentes matizes da violência social do país, que penetra todos os os estratos da sociedade, combinando velhos problemas, como a disputa pela água e a corrupção política, com novos temas, como a vigilância remota dos drones e as novas tecnologias mortíferas e de controle.
Eu assisti Bacurau, depois de visitar a exposição “O que não é floresta é prisão política”, na Ocupação 9 de Julho, na Galeria Reocupa, sobre a qual já falei aqui em outra ocasião. Essa exposição na sua própria realização é uma corrente de energia positiva, que incide sobre a potência da arte e do ativismo em tensionar o presente em direção a mudança.
No ônibus, seguindo para o Itaú da Augusta. Era fim de tarde de domingo, mais precisamente 18h15 e o ônibus não podia seguir em frente porque o acesso à Paulista ainda não estava liberado aos carros. O motorista teria que virar na Antonio Carlos. Foi o pretexto para um surto e ele começar a: “Isso é coisas desses prefeitos boiolas!. São Paulo precisa de um prefeito macho!” O que já foi o suficiente para animar outro passageiro: “Isso é coisa do Kassab (sic). Que gosta de negão.”
A ojeriza desses seres a qualquer forma de civilidade urbana já não me espanta. A grosseria me incomoda, mas tbm já não me choca. Mas a “leitura” homofóbica dos dois me deixou estarrecida. Entrei no cinema nesse clima. Bacurau é um filmaço. Estamos em Guerra.
Transcrição da coluna Ouvir Imagens, de Giselle Beiguelman, veiculada toda segunda-feira, às 8:00, pela Rádio USP (93,7).
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