Não é de hoje que se discute a Lei Rouanet e os impasses da cultura no Brasil, mas depois das eleições o assunto ganhou outros contornos. Seguindo o clima de polarizações que toma o País, grupos conservadores passaram a defender a sua revogação. O argumento desses grupos é que a lei é centralizadora e suas decisões são tendenciosas.

Correm muitos boatos e se você seguir as discussões – melhor seria dizer, batalhas! – que se processam nas redes sociais sobre o tema, vai notar que há muito desconhecimento sobre o assunto.

É comum ver afirmações do tipo: “A maioria dos ARTISTAS são de Esquerda não porque ‘amam os mais pobres’, mas porque amam as verbas da Lei Rouanet.” “Agora os atores sugadores de Rouanet perderão sua mamata.” “Hoje são Rouanets, em janeiro, Ruaneles.” E por aí vai.

Análise técnica

Isso mostra que para muitas pessoas a Lei Rouanet funciona como uma lei de patrocínio direto do Estado aos artistas, mas não é assim que a lei opera. A lei é um mecanismo de financiamento da cultura via renúncia fiscal. Os projetos são submetidos ao Minc e passam por uma análise técnica que avalia se preenchem os requisitos formais. Não há avaliação sobre o mérito das propostas.

Uma vez aprovado, o projeto pode passar para a fase de captação. Ou seja, buscar empresas que queiram patrociná-lo, usando parte do seu Imposto de Renda. Isso acaba por deslocar boa parte do debate cultural para os departamentos de marketing das empresas e suas prioridades. E aí temos um problema.

Mas o fato de termos um problema não quer dizer que devemos simplesmente apoiar a revogação da lei. Diante da ausência de políticas públicas para a cultura, sua extinção seria um desastre! A Lei Rouanet tornou-se estratégica para o funcionamento de instituições de grande porte. O Masp, a Pinacoteca, a Osesp e eventos fundamentais do nosso calendário cultural, como a Bienal, são bons exemplos. Não é possível simplesmente decretar o seu fim. Isso seria apostar, como se disse na Folha recentemente, num apagão cultural.

Fapespizar a cultura

Mas é preciso ponderar que a Lei Rouanet precisa de ajustes. Não podemos ter uma única lei que contemple do pequeno produtor ao megaevento, com praticamente os mesmos requisitos. É preciso, ainda, estabelecer instâncias que sejam responsáveis pela análise de mérito, de conteúdo das propostas.

Sempre que comparo os mecanismos de apoio à cultura com os da área da pesquisa acadêmica, me impressiona como as agências de fomento estão a anos-luz de distância… Veja a Fapesp por exemplo. A Fundação é pública, com autonomia garantida por lei, e os recursos provém do Estado (1% do total da receita tributária do Estado).

Todas as propostas são avaliadas por pares, baseadas em critérios de mérito, processualmente e de forma independente, sem interferência do governo. Essa forma de avaliação garante a qualificação dos projetos e a independência das decisões. Garante também que uma diversidade imensa de projetos, envolvendo recursos de pequeno, médio e grande porte, possam ser contemplados em distintas modalidades de bolsas e auxílios.

Precisamos da Lei Rouanet. Mas precisamos, também, criar mecanismos para fomentar a produção cultural para além dos grandes players e do circuito da economia da cultura. Tá na hora de fapespizar a cultura.

 

Transcrição da coluna Ouvir Imagens, de Giselle Beiguelman, veiculada toda segunda-feira, às 8:00, pela Rádio USP (93,7).

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Destaque: Sofia Borges na 33a Bienal de São Paulo. Foto: Giselle Beiguelman.