A net art foi desde sempre um problema no espaço, por não se enquadrar nas tradições expositivas. Tornou-se um problema para o tempo, desaparecendo com os sites que linkava, os servidores que a abrigaram e as tecnologias que consolidaram a obra
A história da net art é recente, mas cheia de revezes. Eterna prima pobre da artemídia, pela acessibilidade intrínseca às redes que nunca caiu bem no crivo exclusivista dos colecionadores, viveu um breve hype entre o fim dos anos 1990 e o início dos 2000. Nesse curto período, penetrou o circuito das bienais, inclusive a de São Paulo, em 2002, e chegou à Documenta de Kassel, cuja décima edição, em 1997, prometia à arte na rede uma trajetória crítica de sucesso que nunca vingou.
A Documenta X comissionou dez projetos “web site specific”, selecionados pelo crítico suíço Simon Lamunière, curador convidado por Catherine David, curadora-geral da mostra. Revolucionária para a época, a interface online daquela edição distanciava-se do estilo portal para apresentar-se como uma plataforma de experiências artísticas interligada às temáticas e à programação da Documenta.
Com um menu exclusivamente baseado em ícones, o site distribuía os projetos comissionados em quatro eixos principais: Superfícies e Territórios, Dentro e Fora, Grupos e Interpretações e Cidades e Redes. Além disso, trazia um guia de links sobre arte online e um fórum de discussão entre artistas e curadores, publicado no jornal Le Monde.
Na Documenta em si, o site era disponibilizado localmente no café, transformado em net.room. A ambientação em formato de escritório e offline desagradou aos artistas. Respondendo a um e-mail da curadora Catherine David, no qual ela explicava suas expectativas sobre o site da mostra, a dupla de webartistas JODI resumiu a insatisfação geral na lista de discussão dos projetos de internet da Documenta X:
A Documenta X acabou, mas a discussão de fundo – como expor net art – perdurou, gerando, no fim das contas, mais frustações que soluções. Acima de tudo, a arte online depende da internet em todos os seus sentidos e isso vai muito além de uma tela de computador. É uma arte contextual, que lida não só com o trânsito dos dados na rede, mas com a situação particular de quem a acessa (do modelo de computador ao browser, passando pelo provedor de acesso, até as inúmeras janelas e abas abertas).
Estética da transmissão
Arte ubíqua e do trânsito por excelência, a net art tem por paradigma uma estética da transmissão difícil de se condicionar a situações que lhe são antagônicas, como o meio offline ou a simples projeção em grande escala.
Os projetos desse tipo geralmente se alimentam de informações geradas em tempo real na internet e, portanto, não podem ser apresentados sem conexão. A maioria também é pensada para a situação do consumo individual de informações, sendo por isso ideal que não fuja da escala dos monitores e das telas portáteis. Esse drama parece ter chegado ao fim, redundando no ostracismo total das práticas de arte online das discussões críticas e do circuito da arte. Mas outro se impôs: a difícil tarefa de preservar as obras de arte online.
Do ponto de vista museológico, a preservação é dramática porque as obras dependem de tecnologias digitais que, como se sabe, ficam obsoletas rapidamente no âmbito da internet. Dito de outra forma, se a net art foi desde sempre um problema no espaço, por não se enquadrar nas tradições expositivas, ela tornou-se um problema para o tempo, desaparecendo com os sites que linkava, os servidores que a abrigaram e os recursos tecnológicos que possibilitaram a obra. Uma série de estudos e discussões está em curso, problematizando a questão de como lidar com o arquivamento da net art.
Netescópio, projeto de Gustavo Romano com o museu espanhol MEIAC, Archive 2020, da holandesa Annet Decker, Variable Media Iniciative, coordenado por John Ippolito, nos EUA, ArtPort, com curadoria de Christiane Paul, no Museu Whitney de Nova York, Net Art Pioneers, de Dieter Daniels, na Áustria, Taxononomedia, de Vanina Hoffman, na Argentina, e o VideoBrasil e FILE Archive, no Brasil, são alguns deles. À proliferação de pesquisas e estudos corresponde a constatação das ambivalências da memória nos dias de hoje.
Arquiteturas do esquecimento
Poucas palavras tornaram-se tão corriqueiras no século 21 como “memória”. Até bem pouco tempo confinada aos campos da reflexão historiográfica, neurológica e psicanalítica, a memória converteu-se num aspecto elementar do cotidiano. Tornou-se uma espécie de dado quantificável, uma medida e até um indicador do status social de alguém. Existe um fetiche da “memória” como “coisa”: quanto de memória tem seu computador? E sua câmera? E o seu celular? Tudo isso? Só isso?…
Compram-se memórias, transferem-se memórias, apagam-se e perdem-se memórias. Curiosamente, à inflação discursiva corresponde um vazio metodológico no trato dos produtos culturais criados com os meios a que dizem respeito essas memórias: os meios digitais.
As perguntas – sem resposta – multiplicam-se: como preservar a memória de bens culturais que resistem à objetificação, que muitas vezes só existem contextualmente, como é o caso da net art? Como lidar com memórias tão instáveis, que se esgotam juntamente com a duração dos equipamentos e cujas tipologias não correspondem aos modelos de catalogação das coleções de museus e arquivos?
Como não pensar que, hoje, a memória cultural é também uma questão eco nômica e um serviço que deveria demandar algum tipo de código ético? Afinal, cada vez mais, memórias mediadas por instâncias corporativas, que se abrem como grandes repositórios, são descontinuadas assim que deixam de ser um nicho de marketing conveniente. Basta lembrar o caso recente do Geocities, um serviço de hospedagem gratuita de sites que foi encerrado pelo Yahoo, levando consigo boa parte da história da web 1.0. E se o Google resolver fazer o mesmo com o YouTube?
Talvez essa iminência da desaparição justifique o tom apocalíptico que vem sugerido nos comandos mais elementares de manuseio dos programas de edição digitais, que nos convidam a todo tempo a “salvar” arquivos e não simplesmente guardá-los.
Para não ceder a uma hipótese catastrofista e ir além das pressões de descartabilidade do mercado e da economia da obsolescência programada, melhor seria optar por uma reflexão em torno dos novos sentidos da memória e das tecnologias de memorização, discutindo metodologias de preservação de obras efêmeras e digitais, especialmente aquelas que implicam e denunciam a materialidade das redes (a imbricação com a largura das bandas de tráfego de dados, os tipos de servidores que armazenam os dados, a contextualidade dos links, a validade dos scripts de programação e suas relações com os browsers, entre outras variáveis).
O irrevogável processo de digitalização da cultura demanda a elaboração de um repertório crítico e especializado, com terminologias e métodos adequados, para dar conta das obras produzidas e concebidas para meios digitais, e também da incalculável massa de dados e memórias que se esvaem entre cartões e USBs, acumulados e perdidos em arquivos coletivos e pessoais na internet, alguns dos quais relacionados à história da net art. Enfim, a net art morreu? Então… longa vida à net art!
Publicado originalmente em seLecT , num. 7, agosto/setembro, 2012, p. 68 – 71
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CorelDraw na Alma
maio 15, 2017 at 12:43
Muito bem escrito seu post,obrigado por ter compartilhado.