Poesia
nômade
poe Mirna Feitoza
Trópico
30.10.2003
http://www2.uol.com.br/tropico/arte_1_1761_1.shl
Que
novas possibilidades de leitura e escritura são possíveis
pela interação com os dispositivos e redes de comunicação
remota? Os aparatos de comunicação nomádica,
tais como celulares, Palms, Pocket PCs, que remetem para um indivíduo
em constante deslocamento no espaço, podem interferir nas
percepções e usos que fazemos da cidade? E, se a cidade
é informação, os elementos físicos que
a constituem podem ser convertidos em nodos das redes?
São
questionamentos dessa ordem que permeiam a exposição
3 Teses e 1 Hipótese, em cartaz até 8
de novembro na Galeria Vermelho, em São Paulo. Não
é à-toa. Mais do que experimentos em arte, design,
mídia e tecnologia, os trabalhos nela reunidos espelham algumas
das inquietações que têm pautado o debate acadêmico
acerca dos processos de comunicação engendrados pela
conexão do humano com os dispositivos e redes de comunicação
à distância.
As
três teses em questão -o espaço é
a mídia, trabalhada por Vera Bighetti, em Cadeira;
a mídia é a cidade, defendida por André
Teruya Eichemberg, em Emergent_Water_Scapes, e a
cidade é a interface, refletida em Paisagens
Tipográficas, de Marcelo Bicudo- são resultado
das pesquisas de mestrado desenvolvidas pelos três sob orientação
de Giselle Beiguelman na pós-graduação em Comunicação
e Semiótica da PUC-SP, onde a artista e editora de Novo
Mundo de Trópico é professora e pesquisadora.
A hipótese
-no tempo do nomadismo wireless, a interface é a mensagem-
é da própria Giselle e pode ser aferida em Poétrica
(www.poetrica.net), terceira tele-intervenção em que
a artista explora os contextos de leitura e escritura possibilitados
pela conexão com os dispositivos e redes de comunicação
remota. Contudo, diferentemente de Egoscópio
e Leste o Leste, ambos de 2002, desta vez a artista
se volta especialmente para a elaboração das mensagens
no contexto da comunicação nomádica.
Horizontes da cultura cíbrida
Pensando
a arquitetura no ambiente da cultura cíbrida
(como Giselle Beiguelman tem definido a série de transformações
culturais desenhadas pela linkagem do humano aos dispositivos e
às redes de comunicação on line e off line),
André Teruya Eichemberg dá indícios de como
os arquitetos podem se apropriar da interação dos
citadinos com ambientes simulados para implementar novas soluções
urbanísticas.
A proposta
do arquiteto está sistematizada em Emergent_Water_Scapes.
Na versão montada na galeria, um DVD mostra um auditório
simulado sobre o lago do parque Ibirapuera, em São Paulo,
cuja arquitetura se ergue de acordo com as informações
geradas pelo fluxo de interação dos visitantes imersos
no suposto ambiente.
O espaço
e a arquitetura da cidade também são o tema de Marcelo
Bicudo. Contudo, seu interesse é antes explorar os contextos
de legibilidade e a possibilidade do design em uma cidade congestionada
de informação. Num processo em que a entropia se organiza
como mensagem, Marcelo projeta suas Paisagens Tipográficas
diluindo a cidade em dígitos para recompô-la com fontes
fonéticas e não-fonéticas (tais como Old Style,
Grotescas e Dingbats).
O resultado
é uma plotagem de 1400 dpi, impressa em papel fosco, de laminação
igualmente fosca, afixada em uma das paredes da galeria, e outros
desenhos que funcionam como janelas que revelam ângulos da
cidade tipográfica composta pelo arquiteto e designer.
A confusão
entre real e virtual é investigada por Vera Bighetti em Cadeira.
Trata-se de um ambiente imersivo, montado em uma sala escura, no
qual o visitante explora o espaço utilizando óculos
3D. Conforme interage com o sistema, ele produz uma escritura visual
não-fonética, que se atualiza a cada movimentação
e que parece saltar da tela afixada no fundo sala, em razão
da ilusão dos óculos 3D.
A entropia como mensagem
Como
já dissemos, em Poétrica, Giselle Beiguelman
explora os novos contextos de leitura e escritura possibilitados
pela conectividade com as redes. O sistema envolve uma série
de poemas visuais compostos pela artista com fontes não-fonéticas
e uma tele-intervenção urbana que veicula, em três
painéis eletrônicos da cidade de São Paulo,
mensagens feitas pelos visitantes de Poétrica
a partir dos mesmos recursos usados pela artista na confecção
dos poemas nômades.
Do
ponto de vista da tele-intervenção que provoca no
espaço público, Poétrica não
difere muito de Egoscópio e Leste o Leste.
Contudo, ao que parece, desta vez a artista radicaliza na exploração
daquilo que de fato lhe interessa: os processos entrópicos
de comunicação, se é que é possível
falar nesses termos.
Como
ensinaram os cibernéticos, no âmbito da comunicação
entre máquinas, a entropia é justamente aquilo que
a comunicação tem de controlar para se efetivar como
mensagem. Contudo, isto é o que as mensagens de Poétrica
ironizam, senão no que se refere à mecânica
cibernética que garante o acesso aos poemas nômades,
pelo menos no que diz respeito aos processos de leitura que efetivam
a escritura de tais poemas.
A ironia
está em efetivar um processo de comunicação,
no ambiente cibernético da rede, em que o artista não
tem controle sequer sobre o suporte em que sua mensagem se inscreve,
uma vez que esta, por só existir no fluxo da Web, se realiza
de acordo com os parâmetros permitidos pela interface que
o leitor estabelece com a rede. Esta depende da conexão,
do dispositivo por meio do qual ele se conecta, de seu repertório
de leitura, dentre outros aspectos que remetem para um texto que
está vinculado integralmente ao contexto da leitura. Daí,
Giselle pontuar que, no âmbito da comunicação
em rede, a interface é a mensagem.
Se
é no contexto de leitura que essa escritura se realiza, é
para ele que a artista volta seus experimentos. Em razão
disso, os poemas nômades mais significativos de Poétrica,
do ponto de vista das possibilidades de escritura no ambiente da
comunicação em rede, não são os elaborados
por ela, artista, disponíveis no menu de abertura do site.
São
os elaborados à revelia de seu controle, especialmente os
compostos em situações de trânsito pelos leitores/escritores
andarilhos de Poétrica: aqueles que acessam o
sistema por meio de celulares, Palms, computadores de bolso, enquanto
deslocam-se pela cidade. O que remete para indivíduos imersos
em ambientes ruidosos, congestionados, que minam qualquer possibilidade
de fruição artística de padrão contemplativo.
Contudo, é desse ambiente que emerge a escritura de "Poétrica",
num processo em que a entropia se efetiva como mensagem.
Com
isso, Poétrica testa a emergência de um
padrão de vida pautado pela conectividade do corpo às
redes de telecomunicação em situações
de trânsito, permitida pelos aparatos de comunicação
sem fio que acessam à internet, aquilo que William Mitchell
(2003) tem chamado de nomadismo eletrônico.
Como
Beiguelman tem acentuado, são várias as transformações
culturais engendradas por uma cultura como essa: ciborguização
do corpo, processos de subjetivação de um eu que não
é mais em relação a si mesmo, mas à
sua capacidade de conectividade, novas possibilidades de escritura
e novos contextos de leitura, etc.
Retorno à literatura
No
que diz respeito ao gênero, Poétrica marca
o retorno de Giselle Beiguelman à literatura (se é
que um dia ela deixou a literatura de lado). Com isso, como tão
bem acentuou Lucia Santaella -durante discussão sobre o projeto
na Galeria Vermelho-, revela qual é o objeto primordial de
sua investigação: a escritura.
Nesse
sentido, não dá para falar do experimento sem destacar
a influência de Derrida sobre o pensamento da artista. É
com ele que Beiguelman mais dialoga neste projeto: A escritura
não-fonética quebra o nome, diz o filósofo.
Ao
converter as mensagens de texto de seus leitores em poemas visuais
quase ideogramáticos, usando fontes não-fonéticas
para isso, a escritura de Poétrica quebra nomes,
rebelando-se contra os fundamentos lingüísticos fonológicos
que legaram à escritura a condição de função
estrita e derivada da fala.
Coincidência
ou não, no mesmo ano em que os poemas nômades marcam
o retorno da artista à investigação da escrita
literária sai a versão impressa de O Livro Depois
do Livro (Peirópolis, 2003), projeto lançado
primeiramente em site, em 1999, no ZKM (Museu de Arte e Mídia,
da Alemanha), que inaugurou a incursão da artista no campo
da ciberliteratura, projetando-a no cenário internacional
da webarte.
Diferentemente
do que o nome pode sugerir, O Livro Depois do Livro
não é uma discussão sobre o fim do livro. É
um ensaio sobre leitura, literatura e internet, em versão
on line (www.desvirtual.com/thebook) e impressa.
Se
no site a artista se inspira em O Livro de Areia, de
Borges, para testar os caminhos da literatura no ciberespaço,
a análise que ela faz no livro confirma aquilo que já
havia assinalado no formato anterior: o rompimento das ligações
entre texto e suporte no ambiente da ciberliteratura aponta, afinal,
para a possibilidade de um livro líquido, fluido, tal qual
um livro de areia.
Contudo,
conforme destaca a autora, essa especificidade da escritura em rede
se faz sobre um paradoxo: Ao mesmo tempo em que se confunde
com um espaço construído de memória, (ela)
desenha uma arquitetura do esquecimento. Tal fenômeno
é ilustrado por meio da abertura do código fonte ,
codificado em qualquer página da internet, que quer dizer:
apague da memória do computador do receptor desta página
a versão que acessou antes.
Estaríamos
então diante de um tempo sem lugar para a memória?
Não, se pensarmos que as tecnologias de produção
de texto são também tecnologias de produção
de outras possibilidades estéticas e de outras formas de
memorização, apazigua.
O
Livro Depois do Livro poderia se chamar a escritura
depois da escritura, o leitor depois do leitor,
a literatura depois da literatura, a memória
depois da memória, pois o que o volume anuncia são
novos paradigmas de uma escritura que se realiza no fluxo. Na busca
de descobrir quais são esses novos parâmetros, esta
artista gramatologista deixa os rastros de seu pensamento fluido.
A tele-intervenção
Poétrica, com direito à exibição
dos poemas nômades dos visitantes em três painéis
eletrônicos da cidade de São Paulo (localizados na
Paulista, Consolação e Rebouças), vai até
8 de novembro. Em fevereiro de 2004, o projeto ganha as ruas de
Berlim.
link-se
Poétrica - http://www.poetrica.net
Emergent Water - http://www.geocities.com/emergentwater
Artzero - http://www.artzero.net
O Livro Depois do Livro - http://www.desvirtual.com/thebook
Mirna Feitoza
é jornalista e pesquisadora da semiótica das mídias
e da cognição. Atualmente investiga a relação
da criança com as linguagens eletrônicas, em pesquisa
de doutoramento desenvolvida na Comunicação e Semiótica
da PUC-SP.
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