Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas

Carlos Drummond de Andrade, Congresso Internacional do Medo

 

Basurama

Evento urbano por excelência a Virada Cultural é o espelho da cidade, grande palco em que se projetam todos os nossos podres e nossos desejos, inclusive, e sobretudo, de divertir-se, do latim, divertere — ir-se embora, separar-se, ser diferente, divergir. Mas também, desejo de entreter-se, etimologicamente: entre + ter.

A população tomou as ruas. Estima-se que 4 milhões de pessoas estiveram no centro de São Paulo neste fim de semana. Andaram a pé e lotaram as estações do metrô. As manchetes sobre a Virada Cultural concentraram-se sobre as estatísticas da violência. Os anúncios que a antecederam, na continuidade da programação – 24h –, na quantidade de atrações – mais de 900…

Números, por números, fiquemos com os de Mário de Andrade: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”. Porque esses são os números qualitativos da multidão. Do bando que que quer ser diferente, divergir da hostilidade desta urbe, estar entre e ter a cidade. Divertir-se e entreter-se na melhor acepção dessas palavras.

Marcos Augusto Gonçalves, Vanessa Bárbara e Gilberto Dimenstein já disseram tudo, e melhor, do que eu poderia comentar sobre a hipocrisia de se aventar a hipótese de que São Paulo poderia ser diferente do que é, por uma noite, e da necessidade de resistir, dançando.

Aderir ao discurso tacanho do coronel da PM que alcunhou o encontro de todos as classes, gêneros, idades e linguagens artísticas de “virada criminal” é alternativa perigosa e caminho direto para criminalizar o espaço público. Nessa visão, o melhor é aderir ao modelo shopping center e criar espaços controlados, fechados, com segurança na porta, blindados contra supostos suspeitos “diferenciados”.

É inegável que 9 feridos e 1 morto em uma noite (seja ela de festa, ou não) são fatos (não números) inadmissíveis. Clamar por polícia nas ruas ou bradar pelo fim de eventos públicos como a Virada, com argumentos pífios sobre “o desperdício de dinheiro” é apostar em uma abordagem financeira e estanque da arte e da cultura.

Gerfried Stocker, Diretor Artístico do ars electronica (maior e mais tradicional festival de artemídia do mundo), abre todas as suas conferências com um mesmo slide: “Se você acha que cultura é caro, experimente ignorância”. Assino embaixo.

Precisamos de mais, muito mais viradas. Especialmente da e na cultura de viver a cidade. Isso demanda intensificação dos projetos que nos permitam toma-la sempre, caminhando, usando metrô, lotando não só os palcos em que se apresentam grandes nomes da música, mas também os de apresentações de artistas de menor sucesso comercial, os de teatro, os de dança e os dos  cabarés, como aconteceu neste fim de semana em São Paulo.

Inédita foi a tomada pelas artes visuais, em um evento desse perfil e porte, do Vale do Anhangabaú, em que projeções, obras interativas e balanços, generosamente, tentaram (e conseguiram) “destacar os rostos no anonimato da multidão”, como chamou atenção artigo de Silas Martí, na Folha, fazendo jus ao empenho de Lucas Bambozzi, Bijari, Colaboratório Urbano, Marília Pasculli, Rachel Rosalen & Rafael Marchetti, Basurama, Daniel Seda, Alexis Anastasiou, Facebuilding e muitos outros.

Aula magna de cidadania deu o Tribunal de Justiça de São Paulo, que abriu suas portas para cidade e recebeu uma das intervenções artísticas mais potentes já feitas no Brasil. “Água” de Rejane Cantoni, Leonardo Crescenti e Raquel Kogan, que transformou o Palácio da Justiça em uma incrível piscina virtual, onde o público mergulhou, sem medo na arquitetura sonhada por João Cabral de Melo Neto: “A arquitetura como construir portas,/de abrir; ou como construir o aberto;/ (…) portas por-onde, jamais portas-contra;/por onde, livres: ar luz razão certa.”

 

Balanços, Basurama. Ao fundo, Conjunto VazioÁgua, Rejane Cantoni, Leonardo Crescenti e raquel KoganÁgua, Rejane Cantoni, Leonardo Crescenti e raquel KoganVisualDome, Alexis Anastasiousocketscreen, Rafael Marchetti e Rachel RosalenPonte, Bijari
Multidao, Lucas BambozziPonte, BijariPixel Reflection, Marilia Pasculli1000 Tsurus, Daniel SedaVirada das Artes
Comments (7)
  1. Carolina Libério

    maio 20, 2013 at 17:40

    De fato, ótima a organização e a chamada de grupos de artes visuais, que fizeram um trabalho lindo no Vale do Anhangabaú, no entanto, isto não isenta a organização da Virada da falta de pensamento para segurança. Oferecer um evento não é apenas oferecer atrações, mas oferecer um espaço em que pais, filhos, jovens, velhos, adultos e crianças possam transitar sem medo, e assim de fato aproveitar tudo aquilo que se lhes oferece em termos de cultura. Gostaria de deixar aqui registrado que estávamos videografando a intervenção urbana conduzida pelo grupo Urban Trash Art, um dos grupos convidados pela organização da virada e que tivemos nosso equipamento profissional roubado, tomado de nós à mão armada. É impossível pensar eventos assim sem uma infraestrutura de apoio. No mesmo lugar onde esta bela foto ai acima foi tirada, tivemos uma arma apontada nas costas de um de nossos amigos, que estava dentro do campo de trabalho do UTA. Não havia nenhum policial por perto, a viatura mais próxima disse que não poderia fazer nada, pois o rádio que possuíam era da zona oeste e não havia nenhuma forma de comunicação com o resto do policiamento da virada(!). Novamente, aplaudo e sempre aplaudirei a iniciativa da virada, mas é inocência querer propor um evento desse porte, convidar artistas e não garantir a segurança nem deles e nem do público. Ingenuidade temerosa que infelizmente foi a marca da virada de 2013.

    • gb

      maio 20, 2013 at 17:48

      Carolina,
      Você está correta. E concordo: é necessário garantir a segurança de todos. Discordo é do discurso criminalizador do espaço público, moralista, militarista e conservador e seus argumentos. Sei que não é esse o teu ponto de vista. Além de agradecer a participação do UTA, aproveito para pedir que vc me envie fotos da intervenção de vcs. GB

  2. Rodrigo K

    maio 20, 2013 at 18:10

    Eu fui no evento, andei boa parte do Centro e parei na área da Luz que tem uma fama precedente de lugar perigoso. Saí de lá as 4:30 da manha, levei meu celular e consegui até tirar fotos. Não vi nada de anormal. Nada aconteceu comigo além de uma ressaca óbvia devido ao meu esquenta.
    Sabe o mal das pessoas? Serem egoistas. Eu sei que houveram diversos incidentes assim como acontecem em dias de jogos de futebol, da Parada Gay, do Show da Virada na Paulista.
    Estar na rua é estar sujeito a tudo. Em São Paulo, em Paris, em Nova Iorque, na PQP mas o povo gosta de atacar ovos e manchar a diversão depois de ter se esbaldado nela.
    Quantas pessoas que assim como eu nao sofreram UM arranhão estão lá agora no facebook (diferente de mim nesse ponto) chamando o evento de Cilada Cultura e coisas do tipo.

    Se o evento for por acaso um dia suspenso que seja pelo mal uso e desvalor de seu publico e não por ser uma iniciativa sem validade. Eu fui e iria em outro sem a menor duvida. Eu poderia ter sido assaltado lá como tambem poderia ser na Av. Paulista as 18 horas saindo do meu trabalho.

    • Marcelo Cruz

      maio 21, 2013 at 15:20

      É muito maior do que o cercadinho domesticado que a maioria que reclama conhece e se satisfaz.
      E muito distante da segurança almejada em sua posição fetal.
      A virada abarca todos como um grande oceano que a cada onda pode trazer prazer ou terror, se você não sabe nadar ou não tem intenção de aprender desista.
      Mesmo assim até em alto mar a maré que foi ressaca também vira remanso.
      Procure a piscina mais próxima com a água batendo na canela geralmente conhecida pela alcunha de Sesc, lá ninguém morre afogado.
      O que não dá é achar que tem razão com o discurso não fui e não gostei.
      Tem para todos os gostos, todos os sabores e intenções, até para os arregões.
      Precisamos de mais, que comece mais cedo às sextas e tenha uma edição na primavera.

  3. Marcelo Cruz

    maio 21, 2013 at 15:30

    É muito maior do que o cercadinho domesticado que a maioria que reclama conhece e se satisfaz.
    E muito distante da segurança almejada em sua posição fetal.
    A virada abarca todos como um grande oceano que a cada onda pode trazer prazer ou terror, se você não sabe nadar ou não tem intenção de aprender desista.
    Mesmo assim até em alto mar a maré que foi ressaca também vira remanso.
    Procure a piscina mais próxima com a água batendo na canela geralmente conhecida pela alcunha de Sesc, lá ninguém morre afogado.
    O que não dá é achar que tem razão com o discurso não fui e não gostei.
    Tem para todos os gostos, todos os sabores e intenções, até para os arregões.
    Precisamos de mais, que comece mais cedo às sextas e tenha uma edição na primavera.

  4. Pingback: Giselle Beiguelman: por uma São Paulo não-blindada | Virada Cultural 2013

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