Colofon

O Livro depois do Livro depois do e-livro depois do AI-livro
1999–2025 depois do e-livro depois do AI-livro

Para Peter Weibel, in memoriam
Para Ana Gonçalves Magalhães, pelo apoio incondicional

Premiado pela Fundação Vitae, em 1999, o projeto O Livro depois do Livro foi concebido no contexto da exposição Ex-Libris/Home Page (Paço das Artes, 1996; direção de Ricardo Ribenboim, com curadoria minha e de Sérgio Pizzoli). Foi apresentado pela primeira vez como obra de net art na mostra NET_CONDITION (1999/2000), no ZKM, curada por Peter Weibel. Desde 2014, o site O Livro depois do Livro integra o acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).

O Livro depois do Livro depois do e-livro depois do AI-livro

Giselle Beiguelman, nov. 2025

O Livro depois do Livro foi atualizado, em seu código e webdesign, em 2025, no contexto da exposição Antagonistas (curadoria Bruno Moreschi, Heloisa Espada e Gabriel Pereira), no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP), dez anos depois de a obra ter sido incorporada ao acervo do museu. As regras que fomos estabelecendo aos poucos (como os gradientes em tons de cinza nas prateleiras da estante, que esmaecem as bordas, a atualização dos JavaScripts e as caixas “Registro” e “Contexto”) funcionam como uma espécie de nova gramática para o site.

Como escrevi em Museums of Losses for Clouds of Oblivion (2019), não acredito na restauração de websites. Junto com a professora Ana Gonçalves Magalhães, responsável pela incorporação dessa obra de net art ao acervo do MAC-USP, desenvolvemos uma metodologia para lidar com trabalhos de arte em rede no universo museológico que parte da premissa de que preservar net art pressupõe a impossibilidade de recuperá-la.

Sites como O Livro depois do Livro (1999) exigem rodadas tão intensas de atualização e de reprogramação de código que decidimos assumir que os futuros museus de net art serão museus do inacabado, do não restaurado e do não recuperado. Essa estratégia talvez nos permita lidar com perdas irreversíveis sem depender de um processo subsequente de desaparecimento das obras.

Nesse sentido, a versão atual não apaga sua encarnação "paleoweb" original, que permanece no acervo do MAC-USP, mas a reescreve com novos marcadores históricos. Em 1999, o foco estava em romper a metáfora do livro em relação à web. Em 2025, percebi que também era preciso romper com a própria nostalgia, reformulando tudo para que pudesse sobreviver em smartphones, atender a padrões de acessibilidade e operar em ambientes de segurança e vigilância on-line muito mais rígidos.

A responsividade talvez seja uma das mudanças mais emblemáticas. Na versão original, cada página pressupunha uma tela relativamente fixa: 800×600, uma certa densidade de texto, a ideia da “janela” como moldura estável. Ao tornar o site responsivo, as minhas prateleiras de links agora se dobram para dentro do celular. As tabelas <table></table> viram colunas; no mobile, tornam-se blocos verticais, grids que se contraem, menus que se reorganizam em duas linhas. Digo nós porque teria sido impossível realizar esse trabalho de recompilação sem a ajuda do ChatGPT.

É verdade que a IA teve diversas dificuldades para entender minhas propostas de recodificação, que buscavam preservar a atmosfera de recusa do formato canônico da página impressa, da navegação guiada por menus padronizados em todas as páginas e da desordem intencional de linhas e tipos. Ainda assim, chegamos a alguns acordos, levando em conta a diversidade de telas pelas quais as pessoas acessam hoje a internet. Verdade seja dita, este ainda é um site para desktop (se é que isso ainda existe) e disposição para perder-se.
Browsear é preciso. Navegar não é preciso.

Por um lado, trata-se de um ganho democrático evidente: a leitora/leitor/leitore pode entrar na "estante" do site pelo celular, no metrô, na rua, sem precisar de um desktop vintage ou de um emulador de Netscape. Por outro, a responsividade desestabiliza decisões formais da virada dos anos 2000: espaçamentos concebidos como uma “arquitetura do olhar” passaram a ser recalculados pelos algoritmos de layout, e o gesto de rolar a página substitui parcialmente a flanerie de “clicar no intervalo”.

Na versão original, esses intervalos eram páginas em que um script criava um fade que impede a navegação para frente e para trás, usando os próprios controles do navegador, nas prateleiras da estante que condensa o leitmotiv deste site. Isso rompe a metáfora do browser com o livro e sugere um ambiente em que se percorre um um livro de areia ao invés de navegar com bússolas.

Demorei anos para driblar a segurança dos navegadores atuais e atualizar esses scripts. Trabalhei com programadores qualificados várias vezes, mas foi só com o ChatGPT que consegui reacertar essas páginas tão fundamentais para os conceitos que orientaram a pesquisa que desembocou em O Livro depois do Livro.

O sistema de curadoria de informações (termo que sequer existia em 1999, mas foi desde sempre intrínseco às prateleiras que estruturam o site), foi preservado. Porém, cada prateleira agora vem acompanhada de uma sinopse e de uma nota de arquivo, como se fossem legendas de exposição. Isso tensiona a intenção original, já que o primeiro projeto pressupunha perder-se nos “intervalos” arenosos dos links, ainda que eu tenha mantido menus bastante enigmáticos e intencionalmente pouco padronizados na forma como aparecem (quando aparecem).

Os links das minhas “prateleiras giratórias” não foram atualizados no sentido de incorporar novas entradas, mas foram revisados, e os links mortos foram removidos, mantendo-se as entradas originais. Nesse sentido, a estante, que antes operava apenas como heterotopia, passa também a funcionar como arqueologia da web, com um mapa do que sobreviveu nesses 25 anos e uma indicação do que deixou de existir.

No entanto, é impossível atualizar o site sem esbarrar na cibersegurança como novo regime de censura suave (às vezes nem tanto). Scripts de redirecionamento que funcionavam em 1999 são hoje bloqueados ou considerados suspeitos; pop-ups, iframes aninhados e certas práticas de incorporação simplesmente deixaram de ser viáveis. A web que se tornou responsiva e “user friendly” é também uma web de certificados HTTPS, políticas de segurança de conteúdo e bloqueadores de tudo o que pareça intrusivo. Saudades das máquinas de desescrever...

Apesar disso, algumas páginas importantes resistiram a todas as transformações. São o índice e a icônica p.0.

Isso afeta diretamente a criatividade e o design. Soluções que dependiam de glitches, bugs ou “violências” da interface (janelas que se multiplicam, loops de back-and-forward que aprisionam o/a usuária) foram domesticadas por navegadores como o Chrome para proteger o público. Num mundo de phishing e vigilância, a segurança age como filtro estético (e um tanto irritante), higienizando os riscos que muitas obras de net art dos anos 1990 exploravam como matéria-prima.

Ao incluir, por exemplo, o oldweb.today (o único link novo na vasta coleção deste site) como porta de entrada para uma internet “movida a Netscape”, introduzi uma espécie de máquina do tempo controlada. Afinal, o oldweb.today emula o passado em uma sandbox, sob as regras da web atual. É uma solução engenhosa e sintomática: a paleoweb só pode existir hoje como exceção encapsulada, cercada por camadas de infraestrutura contemporânea que a mantém inofensiva, como os aplicativos que nos prendem em bolhas.

Essa mediação técnica reorganiza o pacto com os leitores. Elas/eles sabem que estão navegando em um arquivo, não mais na zona de risco da internet dos anos 1990.

Em conjunto, as modificações que implementamos se comportam como um palimpsesto sobre a escrita original, feita na linguagem de navegadores pré-Google, pré-smartphone, com modelos de CSS muitas vezes meio tresloucados e metadados muito cuidadosamente organizados.

Realizar essa revisão também foi uma viagem no tempo. Fiquei bastante impressionada com a vitalidade de sites de que eu gostava e hoje gosto ainda mais — como os do duo JODI, funcionando impecavelmente desde os anos 1990 — e feliz em constatar as muitas referências que fiz a meu queridíssimo amigo Mark Amerika, cujas obras continuo considerando referências centrais para pensar a internet.

Por fim, entre as duas versões, abre-se um espaço crítico importante. Revisitar a paleoweb de O Livro depois do Livro, a partir do presente, significa perceber que não foi apenas o dispositivo livro que mudou, mas o próprio campo de forças que define o que é “possível” ou “aceitável” fazer com linguagem, imagem e código na rede.